19 de fevereiro de 2015

CONTO: Back in black

por Marcio de Almeida Bueno

Tudo acontecera em pouco tempo. Ele começou a ver muita televisão, pois não tinha muito o que fazer. Um dia, notou que o rapaz na TV falava diretamente para ele, e o que dizia entrava de maneira muito agradável nos seus ouvidos. Como se estivesse ouvindo sua música favorita. E o rapaz continuava falando. Inicialmente era um comercial bobo de sabão em pó, mas o cara abandonou o texto decorado e começou a falar bem próximo da câmera, em um tom pausado e agradável. E contou muita coisa da vida do nosso herói, explicando porque ele era tão rejeitado, por que as garotas nunca se aproximaram dele, porque ninguém nunca lhe dava bom-dia. Disse também para estar atento à programação. E então o comercial terminou. Aqueles 30 segundos pareceram durar uma hora. Aí ele começou a pensar em tudo o que o moço da TV falara, e em como ele estava certo em tudo que dissera. Como é que ele sabia de tudo? Como é que ele tinha explicação para tudo aquilo? Todas aquelas passagens da sua vida, todos os fatos tristes que passara e para os quais nunca achara explicação. Como era bom Ter um conselheiro particular, alguém que se dispusera a ajudá-lo. E que não o mandava embora após 50 minutos de consulta. E o melhor de tudo era que só ele sabia que aquilo tudo se destinava a ele, sigilo total. Que bom.

(...)

Ela acordou como sempre, escovou os dentes como sempre, tomou o ônibus como sempre etc.

(...)

Então ele começou a prestar muita atenção na programação da televisão. Porque às vezes o rapaz aparecia no meio de uma novela, filme, programa de auditório, comercial de cigarro. Tudo estava normal até que o rapaz aparecia em cena, aproximava-se da câmera e dizia aquelas coisas tão bonitas. Os outrso atores nem notavam. O rapaz (ele não tinha nome, porra?) voltava a falar do porquê de tantos problemas na vida, e o que fazer para solucioná-los.

Um dia, o rapaz apareceu no meio de um filme de romanos e disse:

-Você é Deus. Corte esse cabelo e aja com tal. Não pense na destruição de todo o Universo senão o Universo se destruirá. Faça alguma coisa. Mostre ao mundo que

Aí a TV saiu do ar. Mas ele já sabia o que fazer. Cortou um pouco do cabelo com o aparelho de barbear que achara na rua, um dia. Enrolou-se no lençol e saiu à rua. Deu a volta no quarteirão e voltou para casa.

Ficou sentado no sofá, fumando e olhando para o passarinho morto na gaiola pendurada junto à janela. O passarinho morrera há duas semanas. ‘Por que será que ele não come a ração que eu coloco todos os dias?’, perguntava-se. Resolveu ouvir um pouco de música. Botou para tocar sua preferida, ‘Back In Black’, do AC/DC. Aqueles riffs são perfeitos. O vocalista Brian Johnson tinha voz de patolino e... algo estranho: a letra quase não mudava. ‘Back in black/ black is back/ back’n’back/ Beck is black/ back in neck/ crack is blank/ bank is clerk, etc’. o deveria estar com defeito. Então, uma súbita vontade de sair. Colocou um capote por cima do lençol que usava, já que estava ficando meio frio. Desceu as eternas escadas velhas do seu prédio e ficou perambulando por algumas horas nas ruas, até embarcar em um ônibus – sem destino certo. Acabou desembarcando em um bairro distante do seu, e na primeira esquina recolheu um papel novinho e colorido do chão. Era um convite para uma festa. Aliás, a festa era naquela noite e ficava ali perto. Alguém que estava indo deve ter deixado cair o ingresso.

Na entrada da festa, uma fila enorme com muita gente estranha: cabelos coloridos, roupas e adereços bizarros – clubbers. ‘Típicos pequeno-burgueses rebeldes’, pensou. Uma garota tinha uma argola que transpassava a bochecha (lembrou-se de um conto de Charles Bukowski).

-Vem cá, isso não dói não? – perguntou.

-Ih, qualé... aqui fora não tem clima pra cantada, lá dentro talvez... – desdenhou a moça.

Depois de uma boa espera (até parecia que a curtição mesmo era estar na fila), conseguiu chegar à porta e apresentar o convite ao porteiro, um crioulo grande e forte.

-Qualé o nome? – perguntou o porteiro, sem tirar os olhos de uma lista de nomes.

-Deus – respondeu, firme.

O crioulo sacudiu a cabeça, já acostumado com coisas do tipo.

-Teu nome não tá na lista. É Deus, mesmo? Não te chamam de outro nome, não?

-‘Aquele que tudo vê’

-Tá certo, amigo, mas esse também não tem. Vamos fazer o seguinte: eu tenho dez anos de casa e sei quando o cara quer entrar de safado ou não. Pela tua cara tu deve ser mesmo um convidado. Vai ver que teu nome tá na lista VIP, que não tá comigo. Tu deve ser um desses cantores de rock, né? Acho que já vi teu clip na MTV... pode entrá, viu?

(...)

Ela também estava na tal festa, e se interessou por aquele cara com um lençol por baixo do capote. Barba por fazer, cabelo com corte assimétrico, parecia um Mickey Rourke mais intelectual. E ela adorava caras tipo Mickey Rourke. Com tanta gente estranha naquele lugar ele nem seria notado, mas ela notou e se aproximou para conversar. Acabaram indo para o apartamento dele.

(...)

Isso era tudo de que se lembrava. Continuava deitado em sua cama, sem lençóis. Acendeu um cigarro. Pensava na mulher morta, agora assassinada (ou apenas esfaqueada pós-morte) por ele. Resolveu voltar para conferir, já que há muito tempo que não podia confiar nos próprios olhos, ou na própria memória, não tinha certeza. O fato é que voltou à sala inúmeras vezes, e em cada vez a mulher estava diferente: morta, sentada no sofá vendo TV, dormindo, agonizando. Voltou à sala outras vezes, e, na vez em que a mulher estava sentada vendo TV, decidiu aproximar-se.

-Bem underground o teu apê – disse ela. – Até a sujeira parece de verdade. Bem produzido. Só achei o canário morto um tanto kitsch, meio Joseph Beuyes.

-Não, não é canário, é passarinho. O nome dele é J.F.K. E acho que ele não tá morto.

-A-hã – disse ela, desinteressada. – Que tal ouvirmos um som?

-Meu som tá quebrado

-Tu não tem algum filme pra vermos no vídeo?

-Filme, só o ‘Cinema Falado’ do Caetano, mas gstaria de te mostrar umas gravações que fiz da TV – disse ele, enquanto colocava a fita na posição certa.

A fita era uma colagem caótica de imagens, lembrava ‘Revolution 9’ dos Beatles. Ele assistia fascinado, com um sorriso infantil, mas ela estava achando horrível.

-É, tem um conhecido meu que também faz vídeo, ele é videomaker, só que usa computação gráfica e

-Ele está sempre aí – ele interrompeu – gravei só para poder ver a qualquer hora.

-Ele quem?

-O moço da TV. Ele aparece para me dar conselhos. Mas só eu sei que os conselhos são para mim – disse ele, fanático, eufórico.

-Tu quer dizer que nessa fita aí tem um cara falando só pra ti? – ela perguntou, já transtornada.

-Pois é, ele tem sido meu melhor amigo. Estou chamando ele J.F.K.

-J.F.K. não era o nome do canário morto?! – perguntou ela, gritando.

-Já falei, não é canário: é passarinho. E não está morto – respondeu, enquanto acendia outro cigarro e pegava a faca.

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